Alemanha Contra a Homofobia

Gustavo Freua
6 min readNov 26, 2022

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MATTHIAS SCHRADER / Pool via REUTERS

A Copa do Catar mal começou e já está envolvida em polêmicas. Uma delas é sobre as manifestações a favor causa LGBTQIAP+, que têm como grandes apoiadores seleções europeias como a da Alemanha.

O país de Beckenbauer, Gerd Müller, Lothar Matthäus e tantos outros passou por desgraças para entender o valor da igualdade.

A homossexualidade foi crime na Alemanha até 1994. O artigo 175 da constituição alemã, criada em 1871, penalizava a “fornicação antinatural” entre homens. A punição para esse crime poderia ser de até 6 meses. Após a primeira guerra mundial, muitos ativistas do país lutaram contra o chamado “parágrafo gay” e queriam uma sociedade mais tolerante. Entretanto, aconteceu exatamente o oposto: em 1933, o partido nazista chegou ao poder com um discurso ultraconservador e entendia que a homossexualidade era um sinal de fraqueza e por isso deveria ser reprimida. Assim, a pena para quem violasse o artigo 175 foi alterada para 10 anos de prisão, mas isso mudou rapidamente conforme Adolf Hitler cresceu como presidente. Os homossexuais juntamente com negros, mestiços, judeus e outras minorias foram vítimas de um dos regimes mais cruéis da história da humanidade que matou cerca de 6 milhões de pessoas.

O fim da ditadura de Hitler e da 2ª Guerra Mundial, em 1945, não significou o fim da opressão contra minorias e a Alemanha ainda viveria décadas de insegurança política. Após a derrota na guerra, o território alemão foi dividido entre as nações aliadas: Estados Unidos, Reino Unido, França e União Soviética que tiveram como missão reestruturar a Alemanha.

O território alemão dividio

O processo de reestruturação levou anos e dividiu o país literalmente: Berlim, a então capital, também passou pela mesma divisão. Como parte dos trabalhos para restauração alemã, os Estados Unidos, o Reino Unido e a França fizeram uma reforma monetária, mas Joseph Stalin, líder da União Soviética, preferiu isolar as áreas sob o seu controle. As políticas do líder comunista não funcionaram no lado oriental tão bem quanto às medidas adotadas pelo lado ocidental, que se desenvolvia e já era reconhecido por outros países europeus. O lado sob controle de Stalin viu cerca de 3 milhões de pessoas migrarem para a parte ocidental motivando assim a criação de uma barreira física para impedir essa saída em massa. Foi dessa forma que em 1961, o muro que dividiu a cidade foi construído.

A construção do muro em 1961

Foi só em 1989, que o muro finalmente caiu, graças a novas políticas e esforços que abriram mais ideologicamente o lado oriental para o mundo. A queda permitiu a reunificação das duas Alemanhas e ideias mais progressistas surgiram. Foi esse processo de mudança que possibilitou o fim do parágrafo gay cinco anos mais tarde. Apesar de não significar o fim da intolerância contra homossexuais, a exclusão do artigo 175 permitiu que um debate mais amplo fosse possível entre a população.

No ano 2000, um garoto alemão de 18 anos fazia sua estreia no futebol profissional jogando pelo Aston Villa, da Inglaterra. Seu nome era Thomas Hitzlsperger e ele atuava como volante. Hitzlsperger nasceu em Munique, cidade que fica no sudeste alemão, e embora não fosse um gênio, se tornou um jogador de extrema consistência.

Thomas Hitzlsperger no Aston Villa

Foram 5 anos jogando no Villa até que em 2005 ele se transferiu para um clube de sua terra natal: o Stuttgart. No novo clube, o volante passou a ser convocado pela seleção da Alemanha principal e disputou a Copa das Confederações de 2005, a copa do mundo de 2006 e a Eurocopa de 2008.

Sua carreira acabou em 2013, quando ele decidiu se aposentar aos 31 anos devido a várias lesões. No mesmo ano, mais um passo contra a intolerância aos homossexuais foi dado na Alemanha. A federação alemã criou a “declaração de Berlim”, que tinha como objetivo combater a homofobia no futebol do país.

No ano seguinte, Hitzlsperger assumiu ser gay para um jornal alemão. Ele não foi o primeiro boleiro a fazer essa revelação, mas até o momento, foi o mais relevante.

Assim, o ex-volante se tornou uma voz ativa na Europa em prol do movimento anti-homofobia e hoje é diretor de futebol do stuttgart.

A ampla discussão sobre o tema criou rapidamente uma nova ideologia no povo alemão que graças ao seu passado entendeu a importância de aceitar o diferente e isso se refletiu no futebol, um esporte majoritariamente machista e homofóbico.

Movimentos como o fussballfans gegen homophobie, “futebol contra a homofobia”, em português, e torcidas abertamente gays como a Queer Pass, do Bayern de Munique, começaram a surgir e a criar uma nova cultura nos estádios alemães. Quem acompanha a Bundesliga está acostumado a ver diversas faixas contra a homofobia nas torcidas de praticamente todos os times e os clubes também passaram a promover campanhas de conscientização e respeito com o público lgbtqiap+.

Esse contexto todo também se estende aos jogadores, algo ainda raro de se ver em outras partes do mundo.

Exemplo disso são ações como a da revista “11 freunde”, que em 2021, criou a campanha “vocês podem contar conosco”. A ideia é mostrar para jogadores gays que não se sentem à vontade que eles serão bem acolhidos caso queiram assumir sua homossexualidade. Mais de 800 jogadores e jogadoras de diversas divisões do país apoiaram a campanha.

A seleção principal não fica atrás e sempre se posiciona a favor da causa. E como você deve saber, um grande símbolo desse apoio é a braçadeira de capitão nas cores do arco-íris, usada por Manuel Neuer, um objeto simples, mas ao mesmo tempo controverso em países mais conservadores.

Um exemplo disso aconteceu durante a partida da Eurocopa de 2020 entre a Alemanha e Hungria no estádio Allianz Arena, localizado em Munique. Os alemães queriam iluminar o estádio com as cores do arco-íris em homenagem ao mês de junho, o mês do orgulho LGBTQIAP+, mas a UEFA vetou isso e também qualquer utilização da bandeira colorida. Vale lembrar que na época, o presidente húngaro era Viktor Orban, político de extrema direita que promoveu várias ações para cercear a liberdade da comunidade gay do seu país.

Agora, nos jogos da copa do catar, a Alemanha e outros países da Europa prometeram usar a braçadeira em protesto contra a opressão catari à gays, mulheres e imigrantes, porém a FIFA alertou que puniria com o cartão amarelo os capitães que entrassem em campo com ela. Até a redação desse texto, nenhum jogador apareceu com a braçadeira e o árbitro que apitou a estreia da seleção alemã até foi checar o acessório no braço de Neuer.

A Copa no Catar é um lembrete de que por mais que avanços a favor da causa LGBTQIAP+ tenham acontecido com mais frequência nos últimos anos, a batalha pelo respeito e a igualdade ainda é longa e terá muitos novos capítulos.

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